quarta-feira, 2 de junho de 2010

Ferreira Gullar, Camões e a Luta Corporal

Ganhar qualquer prêmio já é bom, mas o Prêmio Camões é o mais importante da literatura em língua portuguesa. E o maranhense José Ribamar Ferreira mereceu a conquista anunciada ontem, em Lisboa. Ele é o nosso poeta Ferreira Gullar, um intelectual de uma safra especial da cultura brasileira.

Tive a honra de conhecer Gullar no final dos anos 70, no final da ditadura militar que o obrigou a sair do país, exilado. Eu era rapaz, sonhava em ser compositor e viver de música. Quando chegou a notícia de que ele havia retornado ao Brasil, logo arrumei um jeito de conhecê-lo. Pedi que o jornalista Milton Coelho da Graça, amigo comum, fizesse a ponte e me apresentasse.



Em uma semana estava no apartamento de Gullar, em Ipanema, com meu violão debaixo do braço e as mãos tremendo. Eu tinha musicado três poemas de seu livro "A Luta Corporal". Ele me recebeu muito bem e logo trouxe uma cerveja gelada. Sem muita demora, disse que havia feito uma música para um dos "Sete Poemas Portugueses", o de número 7, e queria mostrar a canção. Ele disse: "Toca aí". E em seguida sentou-se na minha frente e fechou os olhos. Tremi mais ainda e cantei. Ao final ele abriu os olhos e pediu: "Você pode tocar de novo?"

A mesma cena se repetiu mais duas vezes e eu aflito, sem saber se ele gostava ou não. No final, Gullar disse as duas palavras que eu queria ouvir: "Muito bom". Ninguém imagina a minha felicidade.

Depois do sufoco o papo correu solto e ele ainda me pediu para tocar a canção novamente. Tomei coragem e acabei perguntando se ele não tinha poemas inéditos, que dessem música, e ele me emprestou uma pasta com vários. Sai de lá como quem levava um tesouro. E era.

Ainda fiz música para outros cinco poemas e ainda hoje escutei, orgulhoso, a gravação da primeira, que passei a chamar de Duplo Espelho, com a concordância dele, claro. Um poema marcante.

7

Neste leito de ausência em que me esqueço
desperta um longo rio solitário:
se ele cresce de mim, se dele cresço,
mal sabe o coração desnecessário.

O rio corre e vai sem ter começo
nem foz, e o curso, que é constante, é vário.
Vai nas águas levando, involuntário,
luas onde me acordo e me adormeço.

Sobre o leito de sal, sou luz e gesso:
duplo espelho - o precário no precário.
Flore um lado de mim? No outro, ao contrário,
de silêncio em silêncio me apodreço.

Entre o que é rosa e lodo necessário,
passa um rio sem foz e sem começo.


Gullar, abraços e parabéns!

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