A VIDA DOS OUTROS E AS NOSSAS
*André Iki Siqueira
Afinal, a gente pode ou não pode
falar da vida dos outros?
Tenho acompanhado diariamente a grande
polêmica sobre as biografias, censura, privacidade e direitos. As divergências estão
bem nítidas entre os que defendem a liberdade dos escritores e quem veta ou
restringe. Todos os argumentos estão na mesa e os ministros vão bater o
martelo. Entendo a posição dos que sempre lutaram pela democracia e querem
preservar as intimidades e suas famílias. E acho que não merecem patrulhamento.
É diferente do grupo de parlamentares que obstruem as biografias apenas com a
intenção de esconder suas conspirações, corrupção e crimes. Eu subscrevi o
manifesto dos escritores e quero dar minha contribuição. O tema ganhou espaço
na imprensa e chegou aos botequins, onde muito se fala da vida de todo mundo em
calorosos debates, que muitas vezes terminam mal.
Nos veículos de comunicação,
todos os dias, a vida dos homens públicos é exposta e qualquer biografia pode
ser arranhada definitivamente. Não é necessário pedir autorização aos atacados
ou às suas famílias. Claro, existe liberdade de imprensa e há regras, muitas
até discutíveis. Nenhum compositor pede autorização para usar o nome de um
personagem numa de suas canções. As escolas de samba também têm liberdade para
fazer e comercializar o seu carnaval sobre uma personalidade, transmitindo por
televisão para todo o planeta. Grandes sambas-enredos biográficos passaram na
avenida.
Quando decidi pesquisar a vida de
João Saldanha para posteriormente escrever sua biografia (“João Saldanha, uma vida em jogo”, Companhia Editora Nacional) e
dirigir um documentário sobre a fera (“João
Saldanha”, Tv Zero), quis reconstruir a trajetória de um personagem que
ficara com fama de mitômano e bêbado, por conta de vários comentários em
redações, bares e até em livros. Eu tinha o desafio de provar o contrário e
estabelecer a verdade ou comprovar que João, meu ídolo e referência no futebol,
desde criança, era realmente o que se falara antes. Não era. A pesquisa revelou
que Saldanha foi muito mais do que todos sabiam. Antes de ser o técnico que
montou a seleção brasileira campeão de 1970 e virar o comentarista que o Brasil
inteiro consagrou, João havia participado ativamente de todas as lutas
políticas por um país democrático e livre. A sua história cruzava com a nossa
história.
Meu primeiro movimento foi
procurar a família de João, pedir a autorização e convidar seus parentes para
participar do projeto. A família Saldanha é um exemplo que merece homenagens.
Nunca me pediram nada e só conheceram o livro e o filme nos dias de seus
lançamentos. O que fiz, por decisão da editora, foi enviar para cada
entrevistado apenas os trechos que continham suas declarações e solicitar a
aprovação e autorização para publicar. O documentário só foi visto pela família
na estreia, durante o festival “É Tudo Verdade”. Mas sei que o comportamento
dos Saldanha é uma raridade no nosso meio.
Fico feliz com a posição do
ministro da Justiça José Eduardo Cardozo a favor da liberdade dos biógrafos,
mas aqui vai uma dica para o governo. Quando quis andar com meu segundo projeto
de documentário biográfico, esbarrei numa exigência da Ancine: a autorização
dos herdeiros do personagem. E parei. O Estado facilita a censura prévia. É
preciso rever e mudar. Se fosse nos EUA, Michael Moore não teria produzido
quase nenhum de seus filmes, como Tiros em Columbine, onde o diretor apresenta
imagens e acusa o ator Charlton Heston, que certamente não daria autorização
para o uso.
No tempo da internet, não há mais
como segurar a difusão de uma obra. Vai proibir na livraria, mas o texto estará
na rede, mascarado ou não, com título alterado e capa fake. As biografias
virais.
Vou continuar escrevendo
biografias e dirigindo documentários sobre personalidades que fazem parte das
nossas vidas. É a vida dos outros dentro das nossas, é História. Escrever com
responsabilidade, respeito e sempre verdadeiro. As biografias “difamatórias”
são uma exceção e a Justiça é o caminho para reparação e punição aos erros, difamações
e ofensas. Mas escrever sempre com liberdade. A mesma liberdade que garante ao
entrevistado de um jornal, revista, rádio ou tv, denegrir a imagem de quem quer
que seja, principalmente se for um ídolo nacional e reconhecido
internacionalmente. Basta uma linha, uma palavra para se queimar em definitivo
um personagem.
E depois de tudo que li, ouso
dizer que os gênios também erram.
*André Iki Siqueira, 53, é biógrafo e documentarista.
Nenhum comentário:
Postar um comentário