sábado, 2 de novembro de 2013

A vida dos outros e as nossas

Meu artigo sobre a polêmica das biografias, publicado hoje no site da Folha de S. Paulo: http://folha.com/no1365781


A VIDA DOS OUTROS E AS NOSSAS

*André Iki Siqueira


Afinal, a gente pode ou não pode falar da vida dos outros?

Tenho acompanhado diariamente a grande polêmica sobre as biografias, censura, privacidade e direitos. As divergências estão bem nítidas entre os que defendem a liberdade dos escritores e quem veta ou restringe. Todos os argumentos estão na mesa e os ministros vão bater o martelo. Entendo a posição dos que sempre lutaram pela democracia e querem preservar as intimidades e suas famílias. E acho que não merecem patrulhamento. É diferente do grupo de parlamentares que obstruem as biografias apenas com a intenção de esconder suas conspirações, corrupção e crimes. Eu subscrevi o manifesto dos escritores e quero dar minha contribuição. O tema ganhou espaço na imprensa e chegou aos botequins, onde muito se fala da vida de todo mundo em calorosos debates, que muitas vezes terminam mal.

Nos veículos de comunicação, todos os dias, a vida dos homens públicos é exposta e qualquer biografia pode ser arranhada definitivamente. Não é necessário pedir autorização aos atacados ou às suas famílias. Claro, existe liberdade de imprensa e há regras, muitas até discutíveis. Nenhum compositor pede autorização para usar o nome de um personagem numa de suas canções. As escolas de samba também têm liberdade para fazer e comercializar o seu carnaval sobre uma personalidade, transmitindo por televisão para todo o planeta. Grandes sambas-enredos biográficos passaram na avenida.

Quando decidi pesquisar a vida de João Saldanha para posteriormente escrever sua biografia (“João Saldanha, uma vida em jogo”, Companhia Editora Nacional) e dirigir um documentário sobre a fera (“João Saldanha”, Tv Zero), quis reconstruir a trajetória de um personagem que ficara com fama de mitômano e bêbado, por conta de vários comentários em redações, bares e até em livros. Eu tinha o desafio de provar o contrário e estabelecer a verdade ou comprovar que João, meu ídolo e referência no futebol, desde criança, era realmente o que se falara antes. Não era. A pesquisa revelou que Saldanha foi muito mais do que todos sabiam. Antes de ser o técnico que montou a seleção brasileira campeão de 1970 e virar o comentarista que o Brasil inteiro consagrou, João havia participado ativamente de todas as lutas políticas por um país democrático e livre. A sua história cruzava com a nossa história. 

Meu primeiro movimento foi procurar a família de João, pedir a autorização e convidar seus parentes para participar do projeto. A família Saldanha é um exemplo que merece homenagens. Nunca me pediram nada e só conheceram o livro e o filme nos dias de seus lançamentos. O que fiz, por decisão da editora, foi enviar para cada entrevistado apenas os trechos que continham suas declarações e solicitar a aprovação e autorização para publicar. O documentário só foi visto pela família na estreia, durante o festival “É Tudo Verdade”. Mas sei que o comportamento dos Saldanha é uma raridade no nosso meio.

Fico feliz com a posição do ministro da Justiça José Eduardo Cardozo a favor da liberdade dos biógrafos, mas aqui vai uma dica para o governo. Quando quis andar com meu segundo projeto de documentário biográfico, esbarrei numa exigência da Ancine: a autorização dos herdeiros do personagem. E parei. O Estado facilita a censura prévia. É preciso rever e mudar. Se fosse nos EUA, Michael Moore não teria produzido quase nenhum de seus filmes, como Tiros em Columbine, onde o diretor apresenta imagens e acusa o ator Charlton Heston, que certamente não daria autorização para o uso.


No tempo da internet, não há mais como segurar a difusão de uma obra. Vai proibir na livraria, mas o texto estará na rede, mascarado ou não, com título alterado e capa fake. As biografias virais.


Vou continuar escrevendo biografias e dirigindo documentários sobre personalidades que fazem parte das nossas vidas. É a vida dos outros dentro das nossas, é História. Escrever com responsabilidade, respeito e sempre verdadeiro. As biografias “difamatórias” são uma exceção e a Justiça é o caminho para reparação e punição aos erros, difamações e ofensas. Mas escrever sempre com liberdade. A mesma liberdade que garante ao entrevistado de um jornal, revista, rádio ou tv, denegrir a imagem de quem quer que seja, principalmente se for um ídolo nacional e reconhecido internacionalmente. Basta uma linha, uma palavra para se queimar em definitivo um personagem.

E depois de tudo que li, ouso dizer que os gênios também erram.


*André Iki Siqueira, 53, é biógrafo e documentarista.

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